Notícias falsas, discursos de ódio, ou a dificuldade de aceitar diferentes pontos de vistas e de divergir de maneira respeitosa e qualificada não são fenômenos novos. Esses temas, porém, têm despertado cada vez mais preocupação nos dias atuais por causa do risco que representam para a democracia.
O que há de novo – e perigoso – em relação a esses tópicos é a combinação de três fatores: a crescente polarização política; a descrença em instituições tradicionais; e o surgimento de plataformas como as mídias sociais.
Essas últimas podem ser ferramentas poderosas para conectar pessoas, mas têm servido também para potencializar a intolerância, na medida em que reforçam a tendência de grupos se fecharem apenas entre aqueles que compartilham a mesma opinião.
Este é um problema que precisa mobilizar toda a sociedade. E as escolas têm uma contribuição importante a dar. Num estudo publicado nos Estados Unidos em 2017, os pesquisadores Joseph Kahne (universidade da Califórnia) e Benjamin Bowyer (universidade de Santa Clara) trazem importantes insumos para o debate.
Ao aplicarem um questionário a 2.101 americanos de 15 a 27 anos, os autores primeiro constatam algo já sabido: a capacidade humana de distinguir uma informação verdadeira de uma grosseiramente falsa é altamente influenciada por nossas crenças prévias.
Trata-se de um fenômeno conhecido como viés de confirmação, ou a maior propensão de aceitar qualquer informação – mesmo quando grosseiramente falsa – que confirme nossos pontos de vista, e de desconsiderar aquilo que confronte nossas crenças, mesmo quando se tratar de um dado preciso.
O interesse dos autores, porém, era em pesquisar que tipo de trabalho pode ser feito na escola para impactar esse resultado. Como no estudo eles utilizaram dados sobre questões políticas no contexto americano, os pesquisadores investigaram se o maior conhecimento do sistema político dos Estados Unidos teria alguma influência na resposta dos jovens.
Em tese, um cidadão mais bem informado seria mais capaz de distinguir o que é falso do que é verdadeiro. Este conhecimento, porém, não teve efeito algum.
Essa conclusão confirma o que outros estudos também mostram: a dificuldade de distinguir uma informação falsa de uma verdadeira em temas que nos mobilizam de forma intensa ou apaixonada nada tem a ver com o nível de escolaridade, inteligência, ou conhecimento de cada indivíduo.
Isso explica, por exemplo, por que mesmo pessoas com formação universitária são capazes de acreditar numa teoria tão bizarra quanto a de que a terra é plana, ou de divulgar informações grosseiramente falsas em períodos eleitorais, quando essas mobilizam suas paixões políticas mais intensas.
O que realmente fez a diferença no caso do estudo foi outra questão também investigada pelos autores: o fato de os jovens terem participado na escola de atividades de orientação sobre como encontrar informações confiáveis, e de discussões sobre a importância de avaliar a partir de evidências argumentos que embasam opiniões pessoais.
Jovens que tiveram acesso a essas aulas na escola tinham uma chance 26% maior de identificar informações falsas, mesmo quando elas confirmavam seus pontos de vista prévios.
Essa é uma notícia alvissareira para quem acredita no papel que a escola pode desempenhar para formar indivíduos com maior capacidade de estabelecer diálogos construtivos, mesmo com quem discordamos.
Mas a escola, sozinha, não faz milagre. E mesmo entre os jovens que tiveram essa oportunidade, a pesquisa identificava que cerca de metade deles continuava tendo dificuldade de separar o joio do trigo, quando o que estava em jogo confirmava ou contradizia fortes crenças prévias.
A pesquisa de Kahen e Bowyer trata do contexto americano. Mas o fenômeno da polarização crescente, das notícias falsas e de nossa incapacidade crescente de divergir de forma qualificada é um fenômeno global.
E a necessidade de desenvolver na população as habilidades para melhor lidarem com esses fenômenos complexos não é algo estranho ao debate brasileiro. Pelo contrário, elas se encaixam em muitas das competências gerais estabelecidas em nossa Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Atividades que desenvolvam esse tipo de habilidade nos alunos podem se encaixar, por exemplo, na competência da BNCC que trata da cultura digital: “Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.”
Outra competência da BNCC que dialoga com esse objetivo é a que fala em “argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.”
A necessidade de saber divergir de maneira qualificada e respeitosa também consta da competência que trata da empatia e cooperação: “Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.”
Trabalhar essas e outras habilidades essenciais para a democracia, portanto, é algo que já consta de nossas melhores ambições como sociedade. A questão que ainda precisamos muito a avançar é no apoio a escolas sobre como desenvolver essas habilidades.
Não é algo simples. Há muito a fazer, e essa responsabilidade não pode ficar apenas sobre os ombros de educadores. É uma tarefa urgente, de todos os que se preocupam, independente de sua posição ideológica, com a qualidade de nossa democracia.
Autor: Antônio Gois
Presidente da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação) e colunista de educação do jornal O Globo. Cobre o tema desde 1996. Foi bolsista dos programas Knight Wallace Fellows, na Universidade de Michigan, e da Spencer Education Journalism Fellowship, na Universidade de Columbia. Autor do livro “Quatro Décadas de Gestão Educacional no Brasil” e palestrante no Hub19.
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