Os dispositivos eletrônicos estão cada vez mais presentes na rotina das crianças e adolescentes. Um levantamento feito pela revista Crescer no ano de 2018 revela que quase 40% das crianças de 0 a 8 anos já possuem um dispositivo eletrônico (smartphone, tablet, videogame ou televisão), o que revela um aumento de seis vezes no índice se comparado aos números da última pesquisa, em 2013. Também foi reportado um aumento no número de crianças com dispositivo próprio e no número de horas que elas passam acessando-os. Logo, como não considerar o uso do celular na sala de aula?
Na medida em que o uso da tecnologia digital aumenta, muitos pais e educadores demonstram preocupação com a utilização excessiva dos dispositivos digitais, temendo que as crianças desenvolvam problemas comportamentais por conta do tempo gasto em frente às telas.
Ao pensarmos os smartphones e tablets em sala de aula, acrescentamos ainda a preocupação com o excesso de distrações que essas tecnologias podem gerar, uma vez que tendem a monopolizar a atenção dos alunos.
Qual seria, então, o lugar do celular na escola?
Em um diálogo com Sérgio Guimarães da década de 1980, ao pensar as contribuições que a televisão e o rádio teriam para o processo pedagógico, Paulo Freire diz que uma das coisas mais lastimáveis ao ser humano é ser um “exilado no tempo”. É importante estarmos prontos para educar as crianças para viver bem em sua época, e não fazermos da escola uma espécie de universo paralelo onde estes recursos não existem.
O papel do educador é fazer com que os educandos conheçam melhor os recursos de que fazem uso em suas vidas. Freire também diz que “a televisão não pode ser compreendida em si”, ou seja, os meios não podem ser entendidos como “bons” ou “maus” de forma desconectada de seu uso.
Não se trata de abraçar indiscriminadamente uma tecnologia apenas porque ela existe e está presente no mundo, e sim de pensar criticamente nas relações que as pessoas estabelecem com aquela tecnologia e como ela pode contribuir com o processo pedagógico. A escola não pode ser um ambiente impermeável ao mundo real; pelo contrário, precisa ser um espaço onde discutimos e pensamos o nosso tempo com os alunos.
A primeira coisa que devemos considerar no uso de qualquer tecnologia na sala de aula é o propósito de seu uso, e se ela representa um ganho significativo se comparada a outros recursos analógicos, uma vez que a tecnologia digital requer investimentos substanciais e treinamento constante do corpo docente.
O modelo SAMR (Substituição, Aumento, Modificação e Redefinição, em português) propõe uma estrutura para ajudar os educadores a entender melhor a aplicação de determinada tecnologia em sala de aula. De forma resumida, a ideia do modelo é permitir ao educador visualizar melhor o impacto do uso da tecnologia no processo de aprendizagem, partindo do menor impacto (substituir a escrita no papel pela escrita digital, por exemplo) para o maior impacto (a criação de projetos digitais utilizando recursos audiovisuais e compartilhamento em um ambiente virtual).
A escala não significa, entretanto, que toda implementação de tecnologia digital deve sempre significar uma transformação do processo de aprendizagem. Dependendo do contexto, pode ser que a substituição ou complementação de um recurso faça sentido por si. Entretanto, um planejamento pedagógico de uso de recursos digitais deve sempre almejar uma redefinição do processo de aprendizagem, ou o investimento nestes recursos pode acabar não sendo compensatório, gerando mais indefinições do que ganhos para os envolvidos.
Levando em consideração estes princípios, é possível conceber maneiras de utilizar os celulares na sala de aula de forma que o potencial técnico dos recursos seja empregado para complementar e otimizar o processo pedagógico, além de auxiliar os alunos a refletir sobre o papel que estes dispositivos desempenham na sociedade e em suas vidas.
1) Propósito definido e uso crítico
Em primeiro lugar, o celular deve ser utilizado para um fim específico e claro. A utilização do celular na escola não deve ser atrelada a nenhuma espécie de “prêmio de comportamento” ou “aula especial”, pois essa associação poderá gerar nas crianças e adolescentes uma noção de que os demais recursos da sala de aula são entediantes.
Deve ser claro para todos os envolvidos no processo de aprendizagem que o celular está sendo utilizado como mais uma ferramenta de aprendizagem, assim como o livro, o papel, o quadro interativo ou um dicionário, por exemplo.
Para cada etapa em que o smartphone será utilizado, pode ser interessante ter uma breve discussão sobre a operação daquele recurso, com perguntas como guia, como: “Nós agora iremos coletar dados sobre os esportes mais populares entre os alunos da escola. De que formas isso poderia ser feito? De que forma o celular pode ser utilizado para este fim? Como ele facilita o trabalho? Que outros recursos poderiam ser utilizados?”
Assim, os alunos já iniciam um processo de pensar criticamente e como eles podem (ou não) tornar determinadas tarefas mais simples, dentro e fora da sala de aula.
2) Autonomia dos alunos
O smartphone pode ser um grande impulsionador da autonomia dos estudantes. Por meio do domínio de ferramentas simples, como a câmera e o gravador de voz, os alunos podem trabalhar com diferentes gêneros e discursos na produção de materiais. Vamos considerar, por exemplo, que os alunos devem montar uma apresentação sobre o seu bairro.
Com o auxílio de um smartphone, eles podem usar, em sua apresentação, fotos, vídeos, mapas e entrevistas com moradores, criando um discurso em um gênero legítimo e atual (um verbete da Wikipédia, por exemplo). Além disso, este tipo de atividade permite ao professor não só explorar cada linguagem (como a audiovisual, a fotografia, o texto descritivo, o mapa, a entrevista) e o que ela comunica, mas também como esses elementos podem ser combinados para atingirmos determinada audiência ou causarmos determinado efeito no leitor.
Com alunos já adolescentes, a autonomia pode ser estimulada na forma de consultas online pontuais a dados, dicionários, ferramentas de tradução e outros tipos de referência.
3) Personalização
Outro ponto importante é a personalização do conteúdo que o smartphone pode proporcionar. Ao permitir que os alunos realizem uma tarefa fazendo uso de diferentes discursos, cada aluno pode escolher uma forma discursiva que lhe seja mais agradável e familiar (alunos com maior familiaridade com a língua oral podem fazer uso de gravações de voz, enquanto outros podem preferir construir uma apresentação em slides fazendo uso de imagens e texto).
Vale dizer, claro, que a estratégia é válida para assegurarmos que os alunos tenham voz e escolha dentro das tarefas da sala de aula, e que essa estratégia pode ser utilizada quando o foco não for especificamente na linguagem escrita.
4) Recurso de pesquisa
Outro uso interessante do smartphone é como recurso de pesquisa para trabalhos em grupo. O acesso à internet facilita muito o trabalho de buscar referências e informações para pesquisas sobre determinados temas, e aqui o professor tem a oportunidade de trabalhar também o processo e metodologia de pesquisa com os alunos, aproveitando-se deste momento para desenvolver estratégias de letramento digital, ensinando-os a buscar referências confiáveis na internet, cruzar fontes, onde buscar documentos históricos, como verificar a confiabilidade de uma fonte, dentre outros.
5) Fotos
Com a câmera e a galeria de fotos do smartphone, podemos considerar algumas possibilidades interativas fazendo uso de recursos produzidos pelos próprios alunos: a turma pode criar histórias colaborativamente a partir de fotos produzidas e selecionadas pelos próprios alunos; também pode-se pedir para que os alunos exercitem sua criatividade criando legendas ou histórias para as imagens produzidas pelos seus colegas.
Nas aulas de Ciências e Biologia, os alunos podem criar uma espécie de fichário coletivo de dados sobre plantas da vizinhança, a partir de imagens capturadas por eles em seus smartphones. Aqui, mais uma vez apresenta-se a oportunidade de trabalhar estratégias de letramento e cidadania digital com os alunos, ensinando-os sobre como fazer buscas reversas utilizando imagens, como identificar a origem de uma imagem encontrada online, reiterando a importância da responsabilidade de cada criador com o conteúdo que é disponibilizado na rede.
6) Participação dos alunos em sala de aula
Ainda pensando em amplificar a voz dos alunos em sala de aula, outra possibilidade interessante para o uso dos smartphones é facilitar a participação e colaboração em sala de aula de alunos tímidos ou introvertidos.
Por meio de ferramentas de criação de enquetes em tempo real, os alunos podem participar votando em temas de sua preferência ou compartilhando suas opiniões sem se sentir expostos, ampliando a participação de todos.
7) Ferramentas de organização e produtividade
Algumas ferramentas online podem ajudar muito os alunos adolescentes a organizar seus estudos e tarefas. Os jovens atualmente têm muitas responsabilidades e obrigações, e muitos sentem dificuldade em dar conta de tudo. Primeiramente, pode ser interessante apresentar algumas ferramentas interativas de anotação, que permitem que os estudantes acrescentem imagens, links, áudios e vídeos às anotações de sala de aula.
As anotações virtuais também têm a vantagem de poderem ser salvas e compartilhadas online, facilitando assim o acesso a elas em qualquer dispositivo (no smartphone, tablet ou computador), assim como a troca de anotações entre os alunos, com a possibilidade de construção do conhecimento coletivo.
Existem também aplicativos que podem ser utilizados para gerenciar e organizar os estudos, criando testes automáticos que avaliam o entendimento dos alunos acerca de determinado tema, por exemplo.
8) Estratégias de desintoxicação
Por fim, um dos lugares do celular na sala de aula é exatamente o de questionamento crítico do uso do aparelho. A escola deve ser o ambiente onde pensamos, junto com os alunos, sobre o lugar que os dispositivos digitais ocupam em nossas vidas e seus potenciais danos, uma vez que as redes sociais, por exemplo, podem gerar grandes sentimentos de ansiedade e inadequação em crianças e adolescentes.
Deve-se pensar em conjunto com o corpo discente em formas saudáveis de utilizarmos estes dispositivos de forma a não desenvolver comportamentos compulsivos danosos, como a dependência tecnológica, e também em formas de aproveitar outras partes da vida importantes ao desenvolvimento das crianças e jovens, como a interação social com amigos e familiares, a importância de aproveitar os momentos sem necessariamente registrá-los em câmera, ter uma refeição em família sem a interrupção de celulares, entre outros.
O celular, assim como outros dispositivos digitais, tem um potencial grande como recurso pedagógico na medida em que pode ser um instrumento de ampliação da autonomia e participação dos alunos e um multiplicador da compreensão e participação dos alunos nos múltiplos formatos discursivos contemporâneos. Abraçar o uso crítico do celular na sala de aula significa andar em alinhamento com o nosso tempo e preparar os nossos alunos para o mundo além dos portões escolares, que é o objetivo primordial da educação.
Autor: Cintia Nogueira
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