Violência, depressão e dependência de internet são temas que incomodam muito toda a sociedade e que, em um ritmo crescente, têm desafiado um exército de pais, educadores e profissionais de saúde mental.
Tudo isso a partir de um número alarmante de quadros e episódios perturbadores, sem que as causas possam ser identificadas com segurança e que ações concretas sejam apontadas.
Provavelmente, você também compartilha dessa inquietação por se ver rodeado de dúvidas e perguntas, em um cenário de poucas palavras tranquilizadoras e soluções satisfatórias.
É tentador buscarmos uma resposta simples e rápida que nos satisfaça ou, pior, um único responsável para colocarmos a culpa: “é a vida moderna”, “é o excesso de horas jogando”, “é a alimentação” e por aí vai.
Essa é uma atitude natural, que nos acalma por um tempo breve: acreditamos que deixamos de lado a impotência e que já podemos agir e proteger os que amamos. Fazemos isso o tempo todo.
Se a culpa é da alimentação, mudamos de dieta. Se é o excesso de videogame, limitamos as horas e colocamos outras atividades na agenda da criança. E assim tentamos seguir. Infelizmente problemas complexos dificilmente têm uma simples e única causa.
Reflexões ajudam e todas as ações que melhorem a qualidade de vida têm sua contribuição positiva, mas numa época de soluções descartáveis, algumas ações de profundidade precisam entrar na pauta se desejamos resultados duradouros.
É preciso ampliar nossas discussões e trazer em pauta outros temas. E, nesse momento, a questão da espiritualidade e o sentido da vida deve ser inserida em nosso repertório, conscientes de que assuntos relacionados a ela deixaram de ser algo restrito aos meios religiosos para entrar no topo de pesquisas em áreas como medicina, psicologia e educação.
O que significa espiritualidade?
Espiritualidade hoje tem um conceito muito mais amplo do que um aspecto religioso. Espiritualidade é refletirmos sobre aspectos da vida que saem do cotidiano superficial, é falar sobre questões nossas que transcendem a rotina e os objetivos imediatos.
Pode-se experimentar a transcendência no contato com a natureza, no ato de escutar e apreciar uma música ou ao apoiarmos alguém que amamos. Espiritualidade tem relação com um sentido de vida, no porquê de acordarmos todos os dias e nos levantarmos pela manhã, no que nos mantêm vivos e estimulados a seguir em frente.
Pode estar ligado ao contexto religioso ou surgir num ambiente totalmente laico. Na verdade, podemos estar exercendo práticas religiosas e não necessariamente cultivando nossa espiritualidade. A maioria de nós temos momentos de bem-estar espiritual, mas cultivar de forma rotineira a espiritualidade nem sempre é uma escolha consciente.
Por que cultivar a espiritualidade e o sentido da vida?
Os povos orientais já têm em sua cultura e no dia a dia espaços para meditar, cultivar a conexão com a natureza, além de práticas habituais que remetem à transcendência humana.
Entretanto, o ocidente passou a dedicar mais atenção e respeito a essas práticas na medida em que esses assuntos começam a se popularizar de forma mais séria nos meios científicos, ganhando a atenção de profissionais da medicina, por exemplo, a partir de relatos de mudanças positivas no resultado dos mais diversos tratamentos.
Já está comprovado que pacientes com doenças graves e que cultivavam a espiritualidade, apresentavam menos dor, menores índices de infecção e em alguns casos até melhores índices de cura.
A partir daí a cada dia crescem pesquisas mostrando que cultivar a espiritualidade tem um impacto direto sobre melhor saúde mental, menor taxa de suicídio e melhor qualidade de vida.
E na educação?
Crianças e adolescentes também se beneficiam do cultivo da espiritualidade. Entre aqueles que cultivam desde a infância um sentido maior, uma conexão interior com a vida seja por meio de práticas religiosas ou simplesmente de ações altruístas, como o voluntariado, o risco de suicídio pode ser 20 vezes menor.
Pesquisadores trabalham isolando fatores sociais e culturais e mesmo assim bem-estar espiritual continua tendo impacto relevante e favorável para a saúde mental, menores índices de violência e uso de drogas. Maiores índices de espiritualidades estão associados na maioria dos trabalhos a maior resiliência.
No momento em que desenvolver o potencial humano já é definitivamente visto como mais importante que o mero desenvolvimento de capacidades cognitivas, educadores precisam trazer assuntos como transcendência e sentido de vida à pauta do dia a dia de crianças e adolescentes.
Isto pode chegar a ter, volto a dizer, segundo algumas pesquisas, um impacto maior do que, por exemplo, uma dieta saudável para riscos futuros de câncer e doença cardíaca.
Que mecanismos estão envolvidos nestes resultados?
Constatar resultados pode ser bem mais fácil que descobrir suas causas, mas muitas teorias se baseiam hoje em mecanismos que envolvem o cérebro, o sistema endocrinológico e o sistema imunológico.
Maiores índices de espiritualidade podem gerar bem-estar, qualidade de vida e consequentemente menores índices de estresse. Quando estamos sob estresse, nosso cérebro envia informações para que sejam liberados hormônios que nos deixam prontos para lutar.
Afinal, para nosso cérebro, a expressão “matar um leão por dia” pode ser interpretada de forma mais literal do que imaginamos. Hormônios de estresse diminuem a capacidade de concentração, afetam a pressão sanguínea e têm efeito imunossupressor.
Se permanecemos nestas condições por muito tempo, conexões neurais na área frontal do cérebro (imprescindíveis para atenção, construção do pensamento e memorização por exemplo) são afetadas e hipertensão e risco de infarto cardíaco aumentam. Além disso, se nosso sistema imunológico fica menos ativo, e estamos mais expostos a ter câncer.
Como dissemos, lá no início, toda ação que gere bem-estar pode ser benéfica, mas problemas tão complexos e urgentes como os que enfrentamos na atualidade podem necessitar de um mergulho mais profundo em nossa natureza, no que nos motiva e no sentido que estamos dando a tudo isso.
Se você ainda não faz fica aqui o convite: que tal incluir esse mergulho na sua rotina pessoal e na de seus alunos? Os resultados com certeza serão surpreendentes.
Autor: Ana Rosa Airão
Neuropediatra e doutoranda em Neurologia. Professora do curso de Medicina da UNIRIO nas disciplinas de Neuropediatria e Saúde e Espiritualidade. Membro da Elizabeth Kubler-Ross Foundation Brasil e palestrante do Hub19.
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